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Minha experiência como ledora para um rapaz cego no ENEM

  • luisagusi
  • 14 de set. de 2020
  • 5 min de leitura


Escrevi esse texto pois há um tempo atrás eu me lembrei de uma thread que fiz no Twitter lá no dia 06/11/2016. Primeiro vou copiar aqui o que eu escrevi naquele dia, depois explicarei essa situação.

Ontem o rapaz cego que ajudei tava tão desestimulado que achei que ele não voltaria pro segundo dia. Ele voltou, mas não conseguiu fazer a prova de matemática (nem, como ele ficou nervoso, a redação). Ele já tinha comentado ontem que a prova em braille não ajudava em nada pra fazer as contas e que o soroban não era suficiente pros cálculos. Ainda por cima a prova desse ano tinha gráfico demais e ele absolutamente não conseguia visualizar as descrições da prova de ledor. Ele questionou se o INEP faz provas com deficientes visuais pra testar se as adaptações são adequadas, porque ele achou a prova humilhante. Ontem eu até consegui acompanhá-lo pra fora do prédio pra ele sair com a esposa, mas hoje eu precisei levar a esposa até a sala. Primeira vez que tenho contato com a parte de atendimento especializado do ENEM e a experiência foi mais que negativa.

Primeiro, contexto: em 2016 eu trabalhei no ENEM. Fui ledora para um candidato com cegueira total.

Um ledor é uma pessoa que lê textos em voz alta, geralmente em contextos de inclusão para pessoas com deficiência ou dificuldade de aprendizagem. Numa prova como o ENEM, há candidatos que precisam desse auxílio para que compreendam o texto de forma mais rápida.


Por exemplo, esse rapaz que eu ajudei ficou cego já adulto (acho que aos 20 anos de idade), então ele tinha sim a habilidade de ler braille, mas ele precisava se concentrar muito e demorava bastante, segundo ele mesmo; uma pessoa vidente (ou seja, sem deficiência visual) lendo em voz alta era mais fácil e rápido, ainda mais numa prova com quase uma centena de exercícios a serem feitos em quatro horas. Pessoas com autismo, TDAH, dislexia, etc, também podem pedir por um ledor pelo mesmo motivo prático. Além de ledor, eu também fui transcritora: assim como o aluno pode precisar de ajuda para ler na escrita convencional, pode ser que ele precise que alguém escreva a redação para ele. Nesse caso, o candidato dita o seu texto, e o transcritor transforma a sua fala em texto na folha de redação. Nem todo ledor é transcritor e vice-versa, e pode ser que o aluno peça por apenas um desses papéis. Depende. No final desse texto vou deixar o link de um artigo científico que explica os auxílios possíveis para deficientes visuais no ENEM.

Sobre a falta de auxílio para candidatos cegos, vou citar um caso recente, do ENEM do ano passado: Estudante cego sem transcritor tem nota lançada pelo Inep, do G1. Acho que todos nós vimos no começo desse ano as notícias referentes à demora do Inep sobre erros e atrasos na divulgação de notas da edição mais recente do ENEM. Nessa matéria que eu linkei acima, um rapaz cego levou mais tempo para saber do seu resultado pois ele não teve um transcritor durante a sua prova. Infelizmente a notícia é muito curta e eu fiquei com várias dúvidas:

  1. Ele levou a própria máquina de braille?

  2. A prova estava disponível em braille?

  3. Como ele passou as alternativas para a folha de correção?

  4. O que aconteceu para não ter um transcritor disponível para ele?

  5. Qual é a opinião dele sobre a acessibilidade do ENEM?

Et cetera et cetera.

Agora, explicando sobre o que é o Inep, que foi citado pelo rapaz que eu ajudei. O Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep) é um órgão que faz parte do Ministério da Educação cujas responsabilidades incluem a elaboração de exames e indicadores de qualidade referentes à educação básica e superior, como o ENEM, Enade, Pisa, entre outros descritos no seu site. Portanto, também é responsabilidade do Inep realizar as adaptações necessárias para estudantes com deficiências (motoras, sensoriais, intelectuais) ou transtornos de aprendizagem. Segundo o blog Super Vestibular do UOL (matéria original aqui):

Além de comprovar as necessidades especiais por meio de laudos médicos, os candidatos também recebem ligações dos funcionários do Inep após a solicitação e o encerramento do prazo das inscrições, para confirmar o auxílio requerido e a necessidade de tempo extra, dependendo do tipo e do grau da deficiência.

Eu não sei se o rapaz que eu ajudei recebeu a tal ligação do Inep, mas agora estou me perguntando se o estudante da matéria do G1 também a recebeu. Se os candidatos tem essa comunicação com o Inep, como que ainda assim acontecem essas faltas de ledores e transcritores? Procurando entender isso, eu encontrei outra matéria, dessa vez da Câmara Paulista para Inclusão da Pessoa com Deficiência, disponível aqui, que aponta para outro problema. O governo quer deixar o ENEM 100% digital, e uma das medidas inclui disponibilizar os computadores de prova para candidatos cegos; porém, quem iria realizar o ENEM por computador não recebeu as máquinas.

Ok, só a parte de fazer a prova em si parece uma odisseia. Para terminar, quero linkar um artigo científico intitulado ENEM Acessível: Autonomia para a Pessoa com Deficiência Visual Total no Exame Nacional do Ensino Médio. Os autores são a favor do uso do computador por candidatos cegos pois aí ele conseguirá ser autônomo: durante a prova, ele está agindo sozinho, sendo um momento apenas entre ele e a prova. Com a retirada da dupla de ledores/transcritores, o estudante pode sentir uma maior autoconfiança, já que ele não precisa da ajuda de outra pessoa. O artigo coloca que é necessário que existam as duas opções: o computador e o ledor. O mais importante é que o candidato faça a sua escolha com base no que faz ele se sentir melhor. Ou seja, é preciso considerar o fator humano. Na minha thread, eu enfatizei como o meu candidato se sentiu. Humilhado. Burro. Confuso. Indignado. Ele não entendia os gráficos. Claro que eu não posso afirmar por ele que o computador teria sido melhor, mas eu posso especular que sim. Durante a prova, era perceptível que ele estava mal. Será que, além de se preocupar com a prova, com a possibilidade de conseguir se matricular numa faculdade, ele também não ficou se preocupando com o que eu e a minha colega ledora pensaríamos sobre ele? Eu acho que sim, pois no final ele preferiu esperar dentro da sala e eu fui buscar a esposa dele fora do prédio da prova. Eu imagino que escolheu não “passar vergonha” na frente de estranhos, e quis o apoio moral/emocional da cônjuge para evitar que ele chorasse em público ou algo assim.

Trabalhei no ENEM apenas uma vez, e, ao menos pensando no futuro próximo, acho que será a última. E a única dica que eu poderia dar ao Inep, já que eu não sou especialista nesse assunto, é: não humilhe os estudantes, por favor.



Referências e links das matérias e artigos citados:

  1. GLADSTONE, Lucas. Estudante cego que fez redação do Enem sem transcritor tem nota lançada pelo Inep. G1, 2020. Disponível em: <https://g1.globo.com/rj/regiao-serrana/noticia/2020/01/23/estudante-cego-que-fez-redacao-do-enem-sem-transcritor-tem-nota-lancada-pelo-inep.ghtml>. Acesso em: 03 de março de 2020.

  2. AMARAL, Adriana do. Enem 2019 exclui ferramentas de acessibilidade para cegos. Câmara Paulista para Inclusão da Pessoa com Deficiência, 2019. Disponível em: <https://www.camarainclusao.com.br/noticias/enem-2019-exclui-ferramentas-de-acessibilidade-para-cegos/>. Acesso em: 03 de março de 2020.

  3. LERIA, Lucinda De Almeida; FILGUEIRAS, Lucia Vilela Leite; SILVA, Francisco José Fraga da and FERREIRA, Leonardo Alves. Enem Acessível: Autonomia para a Pessoa com Deficiência Visual Total no Exame Nacional do Ensino Médio. Rev. bras. educ. espec. [online]. 2018, vol.24, n.1, pp.103–120. ISSN 1413–6538. https://doi.org/10.1590/s1413-65382418000100009. Disponível em: <http://ref.scielo.org/vy9z3s>. Acesso em: 03 de março de 2020.


 
 
 
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